04/11/2025
Chaga & Bétula: A alquimia silenciosa da floresta
Entre as florestas boreais do norte do planeta, onde os ventos frios carregam histórias antigas, um encontro silencioso se revela: a Bétula, árvore da luz e do renascimento, e o Chaga (Inonotus obliquus), o ser que transforma feridas em potência curativa.
A Bétula é pioneira entre as árvores, capaz de se erguer após o rigor do inverno, os incêndios ou a devastação da terra. Em diferentes tradições, é símbolo de pureza, proteção e renascimento. Entre os Celtas, aparece no alfabeto ogâmico pela letra Beith (ᚁ), evocando começos e rituais de purificação em festivais como Samhain e Beltane. Nos países eslavos, seus galhos são usados nas banyas — banhos de vapor que unem corpo e alma. Nas lendas irlandesas e escocesas, protege recém-nascidos e acompanha passagens de vida e morte. Já no Himalaia, a casca da Betula utilis serviu de manuscrito sagrado e até hoje é preservada como amuleto. Para povos fino-úgricos e siberianos, a Bétula é a Árvore do Mundo, tronco cósmico que conecta os mundos visível e invisível.
É justamente nas feridas dessa árvore que o Chaga encontra abrigo. Pelas pequenas rachaduras da casca entram esporos do fungo, geralmente quando a Bétula atinge entre 30 e 50 anos de vida. Lentamente, o micélio se espalha pela seiva, consumindo compostos estruturais e provocando a formação de uma massa negra e irregular do lado de fora: o esclerócio. Muitas vezes confundido com carvão, esse corpo é uma fusão única de tecido vegetal e micélio fúngico. Estudos mostram que menos de 10% dessa massa é micélio; o restante é tecido transformado da própria árvore, rico em triterpenos, ácido betulínico, melanina, polifenóis e polissacarídeos bioativos.
O ciclo é lento. O Chaga pode levar de 5 a 20 anos para amadurecer e permanecer por mais de 30 anos na árvore, que resiste durante décadas antes de sucumbir. Vida e morte se entrelaçam numa longa dança bioquímica: a Bétula produz compostos de defesa, enquanto o Inonotus obliquus responde com novas moléculas. Embora possa surgir em outras poucas árvores, é na Bétula que essa alquimia atinge sua forma mais poderosa.
Essa relação, vista pela biologia como parasitismo, ganha nas tradições siberianas um sentido espiritual: um longo pacto, em que a árvore oferece sua força vital e o fungo a devolve em forma de cura. Para os povos Khanty, Mansi e Sami, o Chaga é uma expressão dos espíritos da floresta — um “carvão celestial”, o “sol negro” que guarda o fogo oculto da vida. Em ritos iniciáticos, o xamã escalava a Bétula, árvore cósmica, e reconhecia no fungo a presença do sofrimento transmutado em poder.
Nos usos ancestrais, o Chaga era queimado em oferendas, preparado em infusões densas para nutrir o corpo nos invernos rigorosos ou usado em defumações de purificação. Também servia como isca de fogo, incandescendo lentamente e sendo transportado em jornadas pela floresta. Entre os Khanty, havia o ritual de incandescer o fungo e apagá-lo em água quente, utilizada em ritos femininos após o parto. Povos indígenas da América do Norte, como os Cree, Wet’suwet’en e Tenaina, também o utilizavam em decocções contra dores e infecções,
Na Rússia, o Chaga se consolidou como “remédio do povo”. Há registros do seu uso desde o século XII em crônicas e compêndios de medicina popular, aplicado contra úlceras, gastrites e dores estomacais. Ao longo dos séculos seguintes, essa prática se difundiu entre camponeses e, no século XIX, decocções fervidas por longas horas circulavam amplamente em vilas rurais, aquecendo e nutrindo comunidades inteiras. Nas banyas, além dos galhos de bétula, também se encontrava o chá de Chaga, reforçando o caráter coletivo da cura. Em 1955, seu valor foi oficialmente reconhecido pelo Ministério da Saúde da URSS, que o incluiu na Farmacopeia Soviética.
A ciência moderna aprofunda esse legado. Compostos como ácido betulínico, inotodiol, ergosterol, melanina e beta-glucanas apresentam propriedades antioxidantes, imunomoduladoras e anti-inflamatórias. Estudos laboratoriais mostram efeitos promissores contra vírus como herpes, hepatite C e HIV, além de impacto positivo na regulação da glicemia em jejum pela via PI3K-Akt, essencial ao transporte da glicose. Também se observam benefícios para a microbiota intestinal, redução de processos inflamatórios e suporte em doenças crônicas como a diabetes tipo 2. Ensaios em animais sugerem potencial anticancerígeno, enquanto pesquisas recentes investigam sua proteção ao sistema nervoso, reduzindo danos oxidativos associados a Alzheimer e Parkinson. Faltam, porém, estudos clínicos amplos em humanos para definir dosagens e segurança a longo prazo.
Nos últimos anos, o Chaga ultrapassou as florestas do norte. Tornou-se parte de clínicas de Medicina Tradicional Chinesa em Hong Kong e Taiwan, foi registrado como suplemento na Coreia do Sul e entrou na indústria japonesa em extratos e cosméticos. Não apenas como herança antiga, mas como fruto do diálogo global entre tradições e ciência biomédica.
Hoje, sua expansão traz novos desafios. O crescimento lento sempre foi respeitado nas coletas tradicionais, feitas no inverno ou início da primavera, deixando parte do fungo na árvore para que o ciclo continuasse. A coleta predatória ameaça esse equilíbrio. Honrar a sabedoria ancestral implica resgatar práticas sustentáveis: colher no tempo certo, deixar o fungo se regenerar, compreender que a floresta não é recurso infinito, mas parceira.
O encontro entre a Bétula e o Chaga nos lembra que a floresta é mestra de paradoxos: da dor pode brotar a cura, da escuridão pode emergir a luz, e da lentidão nasce uma medicina profunda. No silêncio boreal, esses dois seres nos oferecem um ensinamento vital: as feridas, quando acolhidas, podem se tornar fonte de força e renovação.
